Primeiro partimos para cima de Moscou, então tomamos Pequim
Moscou tem o potencial – e a competência – para regular todo o novo sistema de relações internacionais que vem surgindo
Pepe Escobar
A Maioria Global tem a liberdade de escolher entre dois caminhos diferentes para se contrapor aos hidrófobos, dementes e cognitivamente dissonantes neocon-straussianos que comandam a política externa imperial: ridicularizá-los implacavelmente ou trabalhar duro na longa e sinuosa estrada que leva à multipolaridade.
A realidade bateu fundo na cúpula Rússia-África realizada em São Petersburgo, com suas surpreendentes amplitude e abrangência, que se refletiram na declaração oficial e em fatos importantes, tais como o perdão russo a nada menos que 23 bilhões da dívida africana e a conclamação, por parte do Presidente Putin, para a entrada na África no G20 e no Conselho de Segurança da ONU ("Chegou a hora de corrigir essa injustiça histórica").
Três intervenções proferidas em São Petersburgo resumem a intenção panafricana de finalmente se livrar do neocolonialismo explorador.
O Presidente da Eritreia, Isaias Afwerki declarou: "Eles estão imprimindo dinheiro. Eles não fabricam nada, só imprimem dinheiro". "Essa vem sendo uma de suas armas, em termos globais – o sistema monetário... sanções aqui, sanções acolá... Precisamos de uma nova arquitetura financeira global".
O Presidente de Burkina Faso, Ibrahim Traoré, o rosto de um novo Sul Global que ressurge, e o líder mais jovem do mundo disse: "Um escravo que não se rebela não merece piedade. A União Africana (UA) tem que parar de condenar os africanos que se decidem por lutar contra seus regimes fantoches do Ocidente".
O Presidente de Uganda, Yoweri Museveni, afirmou: "Uma das facetas do neocolonialismo e do colonialismo foi a África ter sido reduzida à produção apenas de matérias-primas, produtos agrícolas como café, e minerais (…) Esse é o principal fator do atraso das economias africanas: elas não crescem porque outros se apossam de todo o seu valor (…) Portanto, o que quero propor à Rússia e à China é que elas parem de incentivar a política de importar matérias-primas da África, para, ao contrário, trabalhar com os africanos para agregar valor na origem".
Em resumo: a Panáfrica deve fazer todo o possível para criar suas próprias marcas e seus próprios produtos de valor agregado, sem esperar pela "aprovação" do Ocidente.
O drama sul-africano
A África do Sul é um caso imensamente complexo. Sob intensas pressões dos suspeitos de sempre, Pretória já sucumbiu à histeria do Coletivo Ocidental quanto à presença de Putin na cúpula dos BRICS a ser realizada em breve, decidindo-se pela solução de compromisso da presença física do Chanceler Lavrov e da participação de Putin por videoconferência.
Então, em um encontro pessoal com Putin em São Petersburgo, o Presidente Cyril Ramaphosa decidiu falar em nome de todos os líderes africanos e agradeceu a Rússia pela oferta de grãos gratuitos, embora ressaltando que eles não haviam vindo para "receber presentes, a África propõe a volta ao acordo de grãos".
Tradução: não se trata da doação de grãos oferecida a diversos países africanos, trata-se de Pretória pretender se beneficiar com o acordo, que privilegia os oligarcas globalistas e seu vassalo de Kiev.
Compare-se isso à posição russa. Putin, mais uma vez, deixou bem claro: atendam nossas exigências e nós voltaremos ao acordo de grãos. Enquanto isso, a Rússia continua liderando a produção de trigo – como já o fazia anteriormente, e enquanto os preços continuarem a subir nos mercados globais, Moscou irá dividir esses rendimentos com os países mais pobres da África.
As tensões internas aos BRICS, como ilustrado neste caso, são dolorosamente reais, e partem de seus nós mais frágeis. Apesar de toda a retórica tortuosa, o fato é que a Índia e o Brasil preferem que os BRICS+ avancem em ritmo lento, como os sherpas confirmam em off.
Entre os mais de 40 países – número que só faz crescer – que morrem de vontade de se tornarem membros do clube, a Indonésia e a Arábia Saudita estão muito bem posicionados para serem aceitos na linha de frente dos BRICS+, ao contrário da Argentina (que, basicamente, pagou um empréstimo do FMI para poder continuar pagando empréstimos do FMI).
A realidade vem ditando a abordagem lenta. Brasília – sob extrema pressão do "combo Biden" – tem uma margem de manobra minimalista. E Nova Delhi propõe um status de "observador" para os novos candidatos, antes da admissão à condição de membro pleno. De forma muito semelhante à Organização de Cooperação de Xangai (OCX), cuja cúpula mais recente foi realizada online por decisão de Nova Delhi, pela simples razão de a Índia não querer se sentar à mesma mesa que a China.
O preocupante é que o gigantesco cronograma de trabalho prático, tanto dos BRICS quanto da OCX, vem sendo atrasado por uma mistura tóxica de brigas internas e interferência estrangeira. Mas a parceria estratégica Rússia-China deve ter previsto essa possibilidade – e formulado planos contingenciais.
Essencialmente, as discussões mais amplas foram aceleradas até que os parceiros menores venham a se acalmar (ou não...) O que fica claro é que, por exemplo, a possibilidade de a Indonésia, o Irã e a Arábia Saudita serem aceitos nos BRICS+ irá, imediatamente, alterar o equilíbrio de poder interno ao grupo, fazendo com que os elos mais frágeis tenham que correr para alcançá-los.
A UEEA vem em socorro
São Petersburgo demonstrou também algo de crucial para a organização multilateral em desenvolvimento: a importância renovada da União Econômica Eurasiana (UEEA). A UEEA vem se expandindo rapidamente para além da Ásia Central em direção ao Sudeste Asiático (um acordo de livre comércio com a Indonésia é iminente), à África e, principalmente, à Coreia do Norte: o que foi tema de discussões detalhadas durante a recepção de astro do rock dada ao Ministro da Defesa Shoigu em Pyongyang.
Tudo isso sugere o seguinte mapa de percurso: a UEEA na vanguarda, paralelamente à ICR chinesa (um importantíssimo fórum vai ter lugar em Pequim, em outubro), até que os impasses dos BRICS+ e da OCX sejam resolvidos.
Apenas um membro dos BRICS, sem o qual é impossível construir a integração eurasiana, tem problemas sérios com a China: a Índia (incluindo-se aí a rivalidade pela influência na África, Oeste Asiático e Ásia Central).
Ao mesmo tempo, há apenas um membro dos BRICS com capacidade para influenciar a Índia: a Rússia.
Temos aí um desafio histórico. Mas Moscou tem o potencial – e a competência – para regular todo o novo sistema de relações internacionais que vem surgindo. A hora de implementar aquilo que será de fato um novo sistema mundial é agora e em um futuro imediato: de 2025 a 2030.
Assim, é possível afirmar que as relações Rússia-Índia serão a chave para destravar de maneira plena os BRICS+. Entre os tópicos constam uma blindadíssima rodovia do petróleo russa levando à Índia por meio da Rosneft; a solução da charada afegã (com Moscou mediando entre Nova Delhi e Rússia); uma presença mais robusta na OCX; contatos mais estreitos para as deliberações de segurança entre os três ministros da defesa; a inclusão de observadores chineses e indianos no processo Rússia-África, e todo o citado acima microgerenciado pelo próprio Putin.
Se a competição entre a China e a Índia já é um assunto sério, devemos esperar que ela se torne ainda mais complexa após 2030. Aqui, portanto, vemos a Rússia enfrentando mais uma missão primordialmente histórica e cultural. Essa rivalidade vai muito além dos Himalaias, cobrindo todo o arco da competição China-Índia.
E não se esqueçam de ligar para a Gatinha de Ferro
É sempre imensamente esclarecedor acompanhar as análises sobre os BRICS de Sergey Glazyev, Ministro da Integração e Macroeconomia na Comissão Econômica da UEEA.
Glazyev, em duas importantes entrevistas, confirmou que uma unidade de conta digital "à prova de sanções" vem sendo discutida, com base não apenas nas moedas nacionais dos BRICS, mas também em uma cesta de commodities.
Ele confirmou também que "nós" estamos trabalhando na criação de um grupo interno aos BRICS para projetar e montar o novo sistema (por sinal, essas discussões no âmbito da UEEA estão muito mais avançadas).
Segundo Glazyev, um sistema de pagamentos externo ao SWIFT pode ser montado por meio de uma rede de moedas digitais de administração estatal – que não devem ser confundidas com as criptomoedas lastreadas apenas por especuladores privados.
Glazyev, além disso, defende fortemente a adoção do rublo digital. Segundo ele, essa é a maneira de rastrear as transações blockchain e evitar o uso não-proposital de fundos – como ocorre nos desvios para os mercados especulativos.
Além dos enormes desafios, o caminho ótimo seria a UEEA e os BRICS+ observarem o direito internacional e, lenta mas firmemente, construírem sistemas de pagamentos capazes de contornar os pesados pontos de estrangulamento impostos pelo império. Uma nova moeda BRICS pode esperar. O que importa é a evolução das muitas interconexões, à medida que a infraestrutura do novo sistema for sendo construída.
O que nos leva de volta à Coreia do Norte.
A visita de Shoigu de fato abriu caminho para a Coreia do Norte se aliar por inteiro à parceria estratégica Rússia-China no grande processo eurasiano de integração/desenvolvimento/ segurança mútua.
Ah, as ironias da História "pós-tudo"! O Hegêmona pode ter caído na armadilha de destruir a OTAN como uma força militar dotada de credibilidade, no exato momento em que a Rússia e a China fortificam um importante aliado do Nordeste Asiático e do Extremo Oriente – que possui tecnologia nuclear, mísseis balísticos e um complexo industrial-militar hiperprodutivo.
Então, os dementes neocons-straussianos querem expandir sua Guerra Eterna fadada ao fracasso para incluir a hiena hidrófoba que é a Polônia e os chihuahuas do Báltico? Tipo "primeiro nós partimos para cima de Moscou, e então tomamos a China?" Sintam-se à vontade. Mas antes, não se esqueçam de dar um telefonema para a potência do Sul Global que é a Coreia do Norte. A Gatinha de Ferro Kim Yo-jong, irmã mais nova de Kim Jong, vai adorar.
Tradução de Patricia Zimbres
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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